Bruno Cidra, s/título, 2025, técnica mista sobre papel, 60 × 94 × 27 cm.
© Mafalda Mendes.
Bruno Cidra
Buddha’s Hand Lemon
04.10.25—15.11.25
A prática artística tem uma forma muito particular de se desvelar e retrair perante o fenómeno da passagem do tempo. Quando parece anunciar-se, fá-lo consentindo uma origem que simultaneamente anula, sobrevivendo-lhe vestígios escolhidos por uma espécie de seleção natural, por sua vez provida de uma sensibilidade plástica e histórica única. Íntima a cada artista, existe nesta escolha uma negociação indelével entre a tradição e o desconhecido que, quando determinada, potencia aquele que será o mais próximo entendimento indexável acerca da uma obra. Ao propor nesta exposição o conjunto mais recente do trabalho escultórico de Bruno Cidra (1982), sugere-se também e principalmente isso—a deambulação rigorosa por entre os meandros estéticos, conceptuais e históricos que consolidam uma obra conscientemente permeada por acenos limítrofes. O próprio título do trabalho, Buddha’s Hand Lemon (uma variante da cidreira), atua precisamente como uma presença auto-referencial que em si consolida todas as atitudes partilhadas ao longo dos últimos anos.
Apesar de celebrado pela sua subtileza e presença evanescente (i.e. obras que pontuam o espaço como linhas e planos esvoaçantes e pequenos objetos à escala da mão que atuam como epígrafes), o trabalho de Bruno Cidra tem vindo a contemplar distintas abordagens a uma vasta expansão plástica, simultaneamente pictórica e espacial. Para a possibilidade deste afastamento, é necessária uma considerável candura perante a compreensão cronológica de um percurso marcado pelo seu constante empreender. De facto, é através do anuir do subtexto inserido numa lógica muito autoral do artista e não através dos eventos principais que se destacam na sua obra, que é plausível o vislumbre (diria até antecipação) de uma mudança no seu trabalho. Constata-se, portanto, que as cinco esculturas não se tratam do resultado de uma aparição vultuosa de contrastes súbitos, antes de uma necessidade quase inata de transformar uma série de gestos e comportamentos individuais numa grande sinfonia de decisões plásticas. Uma maneira de chegar a este parecer é analisá-lo com a mesma morosidade e disponibilidade com que se olharia o entender de uma catedral—não há um começo; no seu lugar, a necessidade de parar antes do deslumbramento e um retomar a cada instante. Tratando-se de uma espécie de consentimento perante uma dissecação visual e háptica, o que se potencia é um olhar ao todo e ao particular em simultâneo, exercendo-o como um processo de recolhimento e expansão perante os fenómenos da repetição, deslocamento e reaparição.
Paralelas a qualquer apreensão do sensível, a matéria e a forma determinam eixos de partida sobre os quais se permitem identificar categorias de afinidades distintas. Relativamente à primeira, temos como exemplo a constância relativa ao uso do papel enquanto incidência prima da ação do artista (algo que se verifica desde os seus tempos de escola). Transversalmente presente enquanto recurso material, o papel evade-se na sua obra enquanto folha que dá origem a um contorno escultórico para se transformar num mecanismo de compreensão da escultura através das condições da própria natureza do desenho em si. Aplicada ora ao posicionamento dos objetos no espaço, ora interna ao próprio fazer dos objetos em si, a qualidade do desenho enquanto disciplina é uma vertente conceptual consistente na prática de Cidra—evidência também da sua predisposição para a tradição do esboço. A utilização dos metais (i.e. ferro, cobre, bronze e latão) contudo, tem-se modificado ao longo de cada geração de trabalhos. Durante largos períodos de tempo tendo servido como instrumento de modelação espacial e de orientação do papel, a participação do metal no grupo de esculturas que aqui se apresentam dá-se maioritariamente com dois outros intuitos: enquanto patine (sendo pigmento ou condutor de uma ação de oxidação sobre a fibra [16]); e enquanto manifestação da memória da própria tradição escultórica. O interesse por esta dimensão pictórica evidencia o desenvolver de uma reflexão outrora circunscrita ao processo de dissimulação da matéria. Ao existir, retira da dicotomia ferro/papel a responsabilidade do contraste e delega aos movimentos contrabalançados da cor (absolutamente escultórica) a harmonia extenuante da luz e da sombra.
No que respeita a forma (aqui entendida como a segunda categoria de afinidades), sucede-se na sua multiplicidade um género de suspense transeunte no constante reconhecer de intenções crescentes. À semelhança do próprio cítrico homónimo ao nome da exposição [8], estas esculturas (que variam entre média e grande escala) parecem expelir-se para fora da superfície que as sustém, engrandecendo-se e gesticulando-se como vultos vultuosos a irromper a manhã. Moldados segunda uma lógica de camadas (e, consequentemente, segundo um método de adição), os diferentes momentos escultóricos constroem-se à medida que se deformam em sucessões de planos, evidenciando amplos léxicos de imagens que se repetem de soslaio e em errância. Retornando a uma lógica indexável, estes são os gestos que, apesar da sua transformação e alternância, informam a obra do artista. Influenciado pela leveza das representações de torções naturais (nomeadamente em relação à série das vistas sobre o Monte Fuji de Hokusai [5]) existe na sua obra mais antiga uma espécie de recriação e ampliação das folhas que se afastam, ascendendo [1]. Focados em preocupações que fundem, justamente, o moldar do ferro e a fragilidade do papel, estes trabalhos anunciavam uma tendência crescente perante os limites da matéria e da própria forma a si, estranha e misteriosamente, associada. Por outro lado, inicia também aquele que é um entendimento escultórico que, a par da sua atração pelo industrial, convoca a natureza como espetador referente, concebendo a partir daí uma série de projetos que se desenvolvem em contextos do foro natural (i.e. Tutorar na Estufa Fria de Lisboa [7] e Pedra Pesada no Mosteiro de São Martinho de Tibães [6]). Motivado por todas estas determinações orgânicas, verifica-se também no percorrer da sua prática uma gradual tendência para a modificação das patines a si associadas. De facto, é como se este referente transitasse, uma vez mais, da forma para a matéria, devolvendo à primeira a possibilidade de reinvenção. Confluindo revestimentos esverdeados, azulados e ácidos (referenciando, entre outros fenómenos, o processo de oxidação de fungos [4]) com a estranheza dos vestígios físicos facilmente associados a restos arquitetónicos, de ferro-velho ou de arqueologias abandonadas [10], as composições do artista iniciam agora um processo de reconhecimento de escala decididamente superior. Se na sua vertente mais singela e sinuosa se assemelhavam a ruínas ondulantes e a latadas secas, agora o seu entendimento é outro.
Acomodando uma valsa pantanosa, poças de cobras delimitam as extremidades escultóricas e esgueiram-se por entre as sucatas de tubos, vigas e cantoneiras como se trabalhassem para a construção de um fundo de derrames e marmoreados chiaroscuros [3]. Referenciando os princípios do baixo relevo, nomeadamente no que respeita a tradição grega e assíria [15], estas manchas diluem-se e penetram as boças e carapaças amolgadas e insufladas pelo repousar, menos delicado do que outrora, dos restantes elementos sobre si. Ancoradas às paredes e simulando perspetivas, resmas e rolos de chapas (onduladas, quinadas, grandes e pequenas) ora se recolhem, ora levitam sobre a leveza de uma rajada de vento, qual vislumbre de drapeado barroco [2]. Todos estes gomos e músculos apontam, para além de um conjunto de destrezas singulares identificáveis no percurso do artista, rastos da História da Arte muito peculiares ao seu entendimento estético. Se, por um lado, são debruçadas sobre um fascínio pelo ancestral e clássico da escultura, por outro são conduzidas por um rigor e assertividade moderna e minimal. São claras as referências a Stella, Chamberlain e Morris [13 e 9], principalmente quando se contrapõem pesos e gravidades de corpos obtusos em relação a uma harmoniosa construção possível na amálgama. Parques de esculturas relembram as assemblages monocromáticas e modulares de Louise Nevelson na sua incidência para o exterior, para o sair da superfície em confidência. Reservadas no seu deciframento, é resgatável ainda uma alusão à arte moderna e déco. Alastradas por um vagar sinuoso de arcos e semi-curvas (aludindo ao sincronismo americano), ouvem-se os sussurros intermitentes de instrumentos de sopro [14] e de coreografias internas à sua impermanência. Cor e música aliadas na sua tão estreita relação, submersas e efervescentes em cada tom lumínico partilhado pela suscetibilidade da sua ação. Acordeões e suspensões aéreas [12] convocam até a tendência escultórica de meados dos anos 1950 [11], imagens que acompanham a muito particular e discreta referência à escultura decorativa no seu trabalho, numa espécie de necessidade impossível de satisfazer. Mantendo proporções cada vez mais antropomórficas, estas iterações escultóricas libertam-se do fardo da sugestão e convertem-se em janelas de luz e penumbra em ebulição e segredo.
Eva Mendes






