Fotocop

Eva Mendes

Reprodução de uma fotocópia presente no conjunto de Fotocop, de António Palolo, referente à gruta de Addaura, Palermo.

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Existe uma espécie de fascínio imediato no encontro de um trabalho que se descobre existir paralelamente à prática que se manifesta mais predominante na obra de um artista. Tal fenómeno não é estranho no que respeita o caso de António Palolo (1946-2000), um artista que inicia a sua prática artística em Évora (de onde é natural) e que começa a expor precocemente, com apenas dezoito anos. Infelizmente tardio, o reconhecimento do seu trabalho em filme—que remonta muito sucintamente às décadas de 1960 e 1970—revela uma atenção e disponibilidade profundas perante a força de transformação pela experimentação da imagem. Subtilmente informando o seu mais reconhecido trabalho pictórico (bem como aludindo às referências dada, pop e psicadélicas que permeiam as entrelinhas da sua obra plástica) Fotocop é, contudo, um grupo de imagens cuja natureza investigativa relega ao entendimento da obra de Palolo uma qualidade obsessiva e misteriosa outrora menos reconhecível. O vasto conjunto de fotocópias que completam este trabalho foi concretizado em 1985, em Lisboa, na sede do Centro Nacional de Cultura, onde o aparecimento de uma eficaz tecnologia Xerox viria a proporcionar a Palolo uma nova lógica de composição plástica. São ora apresentadas pela primeira vez duas versões da obra em formato expositivo, seguindo as instruções de instalação do artista descritas em texto por Jorge Lima Barreto (1947-2011), parceria frequente durante as décadas de 1980 e 1990.

Potenciando entre si um efeito de mundividência, as mais de quatrocentas fotocópias produzem, simultaneamente, uma apreensão esclarecedora relativamente ao conteúdo teórico e formal presente na obra pictórica de Palolo, mas não sem um tom interrogativo. O conteúdo de Fotocop, até hoje objeto inexplorado, é trabalhado a partir de um conjunto de folhas fotocopiadas na frente e no seu verso onde, pontualmente, Palolo colocou um autocolante colorido evidenciando a rejeição dessa imagem. A lógica de sequência inerente a este trabalho pressupõe que sejam definidas todas as imagens produzidas e escolhidas pelo artista em apenas uma face de uma folha A4, por sua vez fotocopiadas a partir das originais, simulando um ciclo de reprodução fiel à técnica xerográfica original aplicada pelo artista sobre os documentos utilizados. Parte desta seleção de imagens rejeitadas demonstra uma repetição de elementos presentes noutras fotocópias sendo, contudo, fruto de uma composição adjacente aquela pela qual o artista opta avançar. São também rejeitadas várias referências a outros artistas plásticos, nomeadamente excertos de recortes de revistas de arte e notícias de jornal, não obstante estando presentes um grupo (reduzido, mas representativo, das várias áreas artísticas) de citações a outros autores nas fotocópias aprovadas pelo artista (Marcel Duchamp, Louise Nevelson, Giorgio de Chirico, Merce Cunningham, Jackson Pollock, etc). Esta decisão—que não deixa de sinalizar um controlo pela repetição e composição do conjunto—evidencia também um sério exercício de reflexão perante o que são as afinidades mais presentes na sua própria obra (seja pelo seu carácter plástico e gestual, seja pela sua complexidade conceptual).

Em Fotocop e a Arte da Fotocópia, um texto que prima pela sua qualidade poética e rítmica, Lima Barreto descreve um mapa para a organização deste objeto, subdividindo-o em seis tomos distintos: Kubrick, Wilde, Nostradamus, Duchamp, Genet e Warhol. Apesar da sua irrevogável elasticidade relacional é possível, através dos conjuntos de palavras e expressões que dão corpo a cada categoria, identificar a génese de cada elemento presente—seja este figurativo ou abstrato—, pressupondo uma margem de decisão necessária à natureza metonímica das imagens. Um exemplo claro desta lógica de recolocação está presente no reaparecimento frequente de uma mesma fotografia que retrata o corpo humano em parte de uma pintura rupestre na caverna de Addaura (Palermo). Aparentemente referindo-se à categoria de Wilde (que, como nos diz Lima Barreto, incorpora elementos arqueológicos), esta imagem demonstra também uma das primeiras representações humanas de uma relação homossexual, o que a colocaria simultaneamente na categoria Genet (que menciona a sequência homoerótica). Fenómeno frequente deste trabalho, a repetição de imagens, ainda que com enquadramentos distintos, permite que a sua distribuição seja sintonizada com os vários tomos onde as suas diferentes leituras perecem pertencer, não só estimulando cada secção individualmente, como potenciando uma rede de ligações cuidadosamente entrelaçadas por entre as diferentes sequências representativas. No que respeita as fotocópias onde se sucedem métodos de sobreposição e colagem, foram feitas várias leituras aos significados possivelmente velados, nomeadamente através do estudo de cada imagem na composição de modo individual. Numa destas instâncias e a título de exemplificação, surge uma imagem onde o Expressionismo alemão evidente num still d’O Gabinete do Dr. Caligari (1920) se justapõe a uma arquitetura de influência árabe. Ora, depreende-se que Palolo não se interessa nem somente por uma componente de construção arquitectónica, nem apenas pela imagem cinematográfica, antes foca-se num processo de composição que interliga o cinema surrealista, a mística inerente à sua própria ficção e a construção de uma composição geométrica. O mesmo se sucede quando sobrepõe uma topografia medieval à gravura da passagem de um corpo astronómico; quando amplia estatuária da antiga Mesopotânia ao ponto da distorção; ou quando transforma uma fotografia de guerra subitamente numa imagem erótica. A pesquisa inerente à concretização destas distribuições categóricas pressupôs que todas as fotocópias fossem então analisadas ínfima e pormenorizadamente, criando uma espécie de inventário referencial de repetição, recomposição e ressignificação, avaliando de que forma as reincidências visuais em contextos diferentes distribuem as imagens sobre, igualmente, categorias distintas.

Quando se trata de ser fiel à ideia original do artista relativamente à materialização das fotocópias em objetos com um carácter de instalação, é apenas explícito que devem ser montadas seis caixas de diferentes cores (duas pretas, duas azul cobalto, uma vermelha e uma amarela) com conjuntos de vinte e cinco fotocópias dentro de cada uma. Seguidamente, as caixas vão à parede da mesma forma que, como exemplo, uma estante de livros—surgindo então uma espécie de objeto escultórico-pictórico. Contudo, face a esta constatação clara de ausência de informação aprimorada no que respeita a descrição de detalhes técnicos que permitissem executar o objeto eximiamente, foi necessário atravessar um processo de interpretação longe da sua concepção óbvia, maioritariamente devido às lacunas nas dimensões e atribuições cromáticas das caixas, bem como no seu conteúdo e manuseamento. Tais inevidências tornaram necessária a elaboração de uma metodologia gerada a partir de duas lógicas: primeiramente, tendo como referência prima as qualidades formais da obra plástica do artista (i.e. variação cromática, construção geométrica, etc.); e em segundo lugar, privilegiando aquelas que seriam as duas abordagens mais claras de apresentar as sequências (vinte e cinco fotocópias de cada categoria em cada uma das seis caixas e/ou seis sequências de vinte e cinco fotocópias das várias categorias fundidas). Considerando o número total de fotocópias e assumindo que seria de uma importância extrema excluir o mínimo número de imagens aprovadas possíveis, foi feito um cálculo que permitisse conceber quantos conjuntos de seis caixas se poderiam realizar. Frente a um número ímpar, decidiu-se materializar as duas versões possíveis da obra, isto é, dois conjuntos com duas lógicas de agregação sequencial diferentes. Verificado este perecer, surgiu igualmente a hipótese de distinguir ambos os objetos pela espessura das caixas que os compõem, neste caso a partir da uma média aproximada da medida da largura dos notáveis rastos verticais presentes nas pinturas da fase pop do artista. Sucede-se então a presença de dois momentos possíveis de Fotocop: uma versão da obra contendo caixas A4 (por ser o formato das folhas) com dez centímetros de espessura cada uma, e uma versão do mesmo formato com a variante na espessura da lombada, agora com três centímetros; na primeira versão estando inseridas as fotocópias segundo a lógica categórica; na segunda sob a lógica de sequência amálgama. Em ambas as versões as cores estão destacadas às mesmas categorias, atribuídas segundo um raciocínio de aproximação formal no que respeita o seu conteúdo visual: Kubrick (preto), Wilde (azul cobalto), Nostradamus (preto), Duchamp (azul cobalto), Genet (Vermelho) e Warhol (amarelo). Apesar de misturadas, a segunda versão da obra conta com a presença de uma fotocópia da categoria respetiva em primeiro lugar, isto é, iniciando a restante sequência e respeitando o objecto exterior vis à vis o conteúdo interior.

Este debruçar de Palolo sobre a arte eletrostática (método, aliás, utilizado de maneira distinta desde a década de 1960, i.e. Sol LeWitt, Patti Hill, David Hockney, etc.) surge, para além de uma curiosidade inata pelas possibilidades de reprodução da imagem, em confluência com uma predisposição participativa em projetos artísticos de outros autores. Ao lado de Jorge Lima Barreto e Vítor Rua—caso de maior cumplicidade—foram desenvolvidas várias colaborações, nomeadamente relacionadas com o projeto de música experimental, eletrónica e minimal, que os dois últimos tinham—Telectu. A capa de Off Off (1984) seria o início de uma relação criativa que duraria até ao falecimento de Palolo, em 2000. Gerada a partir de uma manipulação xerográfica de uma fotografia, esta intervenção corresponde, sensivelmente, a um dos primeiros registos públicos da fotocópia na obra do artista de uma maneira mais evidente (sendo, apesar disso, um trabalho que permaneceu paralelo à restante produção e que ainda não apresentava o recurso a imagens de origens não autorais). Já em Halley (1985), álbum lançado no mesmo ano de concretização de Fotocop, é introduzida na capa do disco uma imagem do cometa homónimo que passaria em Portugal no ano seguinte (1986) e que reaparece inúmeras vezes (quer em referência escrita, quer em imagem manipulada) no conjunto de fotocópias que completam esta obra. Este interesse pela mística cósmica é denotado, não só em Fotocop e na sua predisposição por imagens e sugestões interestelares, como em OM (1978), um filme que antecede este trabalho e que faz parte de uma investigação análoga que finaliza a experimentação em filme de Palolo na década de 1970. Se existe uma relação plástica entre as reproduções em fotocópia e a entropia evidente nos filmes do artista, esse mesmo vestígio é explorado nas transições lânguidas desta obra. Ao filmar o gesto de pintar a água de uma banheira, o artista produz na superfície que trabalha imagens cujo teor abstrato e mutável diretamente associamos, precisamente, ao do cosmos. Indiscernível de uma acepção teórica no que toca a natureza das imagens e as referências várias que agregam, ambas as obras partilham da mesma estranheza, surpresa e candura visual, ampliadas, numa segunda instância, pela sua muito próxima qualidade sequencial. O contacto com Fotocop potencia assim, ao contrário do que possa ser evidente, um ritmo que é facilmente associável à imagem em movimento, se por excelência é necessária uma ação performativa para o visionamento da obra.