Tic tac toe
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Eva Mendes
Esquema de um desenho presente na primeira semana de exposição de Tic tac toe (2025).
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Mais do que numa exposição convencional, existe em tic tac toe (2025) a necessidade de uma acentuada disponibilidade para uma aproximação à obra, neste caso pressuposta pela ausência do fardo da interpretação. Desenvolvido a partir de uma metodologia de natureza pouco usual, o trabalho de David Maranha (1969) detém-se, precisamente, envolto de uma série de encontros fronteiriços (i.e. desenho e escultura, concerto e performance). Frequentemente reconhecido pela sua contínua, vanguardista e experimental abordagem à prática musical, pouco será o público que diretamente associa a obra de Maranha a um igualmente notável desenvolvimento no campo das artes plásticas. Talvez pela sua qualidade invariavelmente multidisciplinar, talvez apenas pela sua comedida e pontual apresentação, apenas a sua colaboração com o coletivo Osso
Exótico (fundado em 1989 e atualmente formado por André Maranha, Patrícia Machás, Francisco Tropa e Manuel Mota) parece ser referência a esta área. Retomando à veemência da disponibilidade, entende-se com isto que se afigura fundamental a existência de um tempo (liberado pelo espetador e construído pelo artista) sustido numa espécie de vácuo de mútua distribuição— ora pela cronologia do conjunto de obras passadas, ora pela singularidade de cada momento em expansão.
Indiscretamente referenciando o que em português se traduz para jogo do galo (tic tac toe), a exposição sucede-se sobre a premissa de uma coreografia que, a três lugares no espaço, se compreende a partir da relação entre o desenho e o som. Recuperando a constante histórica da horizontalidade do desenho face à verticalidade da pintura, existem no espaço três construções que repousam no chão. Análogas em escala (variando ligeiramente consoante o tamanho da sala) e matéria (finíssimas varetas de madeira de faia tingidas a ecoline encarnado), estes desenhos caracterizam-se pela sua natureza pictográfica encriptada e etérea, lembrando por vezes vislumbres de escrituras neolíticas em pedra. Oriundas de uma predisposição para uma estética minimalista fortemente vinculada a um entendimento geométrico (por vezes reconhecendo S. LeWitt ou F. Stella), estas presenças desdobram-se no interior de um quadrado que subtilmente as contorna e as conserva até ao momento de transformação provocado pela indulgência performática (como, aliás, em Opera, Experimental Intermedia, de 1998 ). Constituindo um conjunto de quinze variações na sua totalidade, cada trio de inscrições (sempre com uma vareta dourada, o imperador, no conjunto) é substituído após cada trio de intervenções musicais no espaço expositivo (distribuído um músico por cada sala), determinando uma cadência constante do desenho e som em potência.
No que respeita a substância sonora (também aqui compreendida enquanto matéria escultórica pela sua ocupação no espaço), será trabalhada através de um processo colaborativo entre o artista e um conjunto de dez músicos e artistas convidados. Ora empiricamente determinados pela sua prática musical, ora associados a ela por vias irmãs, os nomes que integram a programação incluem, segundo a lógica de participação: Margarida Garcia (1977) e Rodrigo Amado (1964); Pedro Tropa (1973) e André Maranha (1966); Helena Espvall e António Júlio Duarte (1965); Riccardo Dillon Wanke (1977) e Manuel Mota (1970); e Bernardo Devlin e Patrícia Machás.
Apesar de confluirem entre si uma série de variações estilísticas (como é o caso das incursões na música folk, eletrónica e estática, ou na possível ad-lib do jazz e do drone) e de instrumentos mais ou menos convencionais (violoncelo, bulbul tarang, baixo, orgão e guitarra elétrica, saxofone, arco recurvo, sintetizadores, caixa Shruti, violino e percussão) depreende-se um tom catalisador pela presença de Maranha em cada uma das composições. Destacado como precursor da Kosmische
Musik em Portugal e consensual vanguardista da cena musical contemporânea, surge do artista a orquestração (na medida do possível) das armadilhas harmónicas e rítmicas que atentam ao fraseamento expressivo das tríades em ação. Determinado o conjunto de gravações sonoras que sucedem individualmente cada um dos amplificadores nas três salas de exposição, presta-se então o trabalho de edição e re-amplificação pela parte do artista. A este processo, associado na sua prática ao que poderíamos nomear como trabalho de estúdio, reserva-se a apreensão in loco durante os dias da exposição que antecedem a subsequente evocação sonora.
Formando um pacto singelo e fortuito entre as dinâmicas espaciais, sonoras e visuais da sua congregação, tic tac toe impulsiona uma série de interpolações entr’acte, demonstrando um léxico de contrastes de uníssonos e oposições. Ao destorcer e recalibrar a pontuação das sequências que encerra, o artista desenha uma espécie de ensemble sonoro cúmplice à vereda plástica que o transforma—acompanhando-o. À semelhança de uma dança da serpentina [fig.7], a natureza apa- rentemente refratária da exposição funde-se numa sequência de formas abstratas excedentes em cataclismo, turbulência, contemplação e melancolia.