Fotocop e a Arte da Fotocópia
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Jorge Lima Barreto
Reprodução de uma fotocópia presente no conjunto de Fotocop, de António Palolo, referente a uma sobreposição de várias imagens.
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A antologia FOTOCÓPIAS de ANTÓNIO PALOLO foi criada no CentroNacional de Cultura, onde o autor era artista/residente e quando o cometa Halley passava rente à Terra.
Trata-se dum trabalho inédito sobre matérias plásticas fotocopiadas a preto e branco; o Palolo revela-se nesta Obra multívoca como o mais distinto criador da Arte Portuguesa para Fotocópia.
Em duas semanas de intensivo experimentalismo o Palolo manipulou o aparato policopiador Xerox, congeminou ícones, astros, corpos, arquitectónica, concretismo e abstracção, comentário social—sobre a Paz, o rito, o erotismo, a pura revelação do glorioso Passado da Arte e a fuga para o Futuro o mais Belo.
A fotocópia ascende à categoria estética do cinema, pelos diversos planos e ilusões visuais.
Estímulo táctil, citação, apropriação, colagem de elementos plásticos heterogéneos (fotografia, gravura, vitral, escultura, decoração, design ou letrismo); desde a representação primitiva à iluminura ao néon—uma propaganda inédita da História da Obra de Arte.
Partindo de fotografias - que na paralisação do disparador sobrepõem diversas imagens —recortes de revistas, jornais, livros de arte, ilustrações científicas, cartas astronómicas, desenhos, ambientes (exposições em galerias, instalações, imagens televisivas, e.a.)—o papel é torcido, amarrotado, inclinado efeito doppler; várias fotocópias que se acumulam em detalhes.
As FOTOCÓPIAS originais foram produzidas pelo Palolo em 1985.
Em 1991 seleccionaram-se 500 das mais de 1000 fotocópias que reunira—grande parte imprimidas nos dois lados da folha A4. O artista estava aberto a que estas obras fossem editadas em livro, ou em seis caixas de capa em preto (2), azul cobalto (2), amarelo (1) e vermelho (1);
Agrupadas em seis tomos com certa incidência motívica, numeradas a lápis, epitetadas com alguns dos Mitos do António Palolo.
Assim:
Tomo 1—kubrick—viagem no Tempo—do vazio de ohm , ao observatório astral, pelas nuvens dentro, acompanhando a saga de Halley, perdendo-se entre as galáxias até ao silêncio metafísico dum fim universal.
Tomo 2—wilde—colecta de vestígios da antiguidade; catálogo de moedas mediterrâneas, estatuária helenista, deuses babilónicos, evocações monumentais de ídolos egípcios, indianos, incas, repertório de soberba arqueologia.
Tomo 3—nostradamus—fragmentos de arquitectura romana, árabe-andaluza, futurista, bauhaus ; jogos de planos e linhas, volumes, tramas, visões do Além, caveira, múmia, distorção, gestualismo.
Tomo 4—duchamp—fotocópias de desenhos, pinturas, esboços, grafismos do próprio autor; enredo de texturas, re-exposição do motivo aos mais diversos tratamentos; mostrar duma outra maneira o que prévio, noutro suporte; aliterações estilísticas no mais apurado sentido plástico, auto-revelação, work in progress.
Tomo 5—genet—sequência homoerótica; a face, a boca, o sexo; o atleta, o modelo, o soldado nú; corpo lascivo de ébano e marfim; olhar de amor; o par apaixonado; sodoma; orgia lírica; epifania genital.
Tomo 6—warhol—discurso de insinuante musicalidade; estampagem de semantemas publicitários, de/ collage; bizarras representações de objectos, animais e plantas; abstracções de sonho; retratos de vedetas, militares, ideologia sociopolítica, intercepção da Guerra na Vida, fuga para o Espaço.
Metáfora pictórica instantânea; pastel, arabesco, risco; vidro, nácar, alumínio e carvão, chumbo e prata; água—prístinas figurações da escultura, da pintura ou do baixo relevo; numismática e recuperação da imagética da antiguidade clássica; episódios como os da greve de afroamericanos ou o do passeio de marajá e do seu séquito; uma rosa é uma rosa é uma rosa ou signo astrológico; cartaz, retrato, narrativa de ficção científica, poema puro da beleza masculina—retrato pop ; personalização cibernauta do cometa; súbita descoberta de vestígios arqueológicos; templo, rua, farda, ritual, capacete, mamilo, umbigo, púbis, arma, star , falo, dedo, clip , totem, alegoria zen, magia druida —cada fotocópia é um ícone recursivo, refaz-se em pequenas séries, por motivos—teatro de magnífico recorte realista, desejo do cosmo. Amor nú e Guerra alucinada.
Devaneio renascentista, flash hollyoodesco, descida ao profano, ao interdito, e a sua redenção no apocalipse—as sobreposições ilustram um novo cubismo enaltecido por espaços múltiplos nos céus de tungsténio, nos negros buracos da percepção e nos universos paralelos derramados na nata.
Texturas de insólita tonalidade, grão, sombra, claro/escuro, trevas primitivas ou a alvura do fogo de míssil; estampa porno, geometria interplanetária; luz, imensa luz branca; deslize de avalanche, pincelada e aspersão, malha milimétrica; algodão de nuvem, iceberg de basalto, alcatrão e penas de íbis; névoa radiográfica de pulmão, fumo, fumigação; fundo do poço; satélite libidinoso e astronauta sensual—manchas…cinzas e outras cinzas—pó, visco, traço, faceta diamantina, linha, ejaculação, ponto azeviche, brilho de lágrima, asa de anjo.
Repetições, jogo de estruturas globulares, sinapses de vídeo, panoramas imaginários - diário de ladrão, projecto triunfante da pósmodernidade.
Como se nestas FOTOCÓPIAS o António Palolo tivesse oferecido para a posteridade uma sua autobiografia.
Talvez os seus delírios, o vislumbre do caos, a dor e a morte, o perpétuo amor humano, representações místicas e sagradas—vírus e amas; resto de Nada incrustado na memória onírica; fluxus imagético de paradoxal filosofia.
Música do Mundo, ruído dos espaços infinitos.